quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

ANATOMIA DO CABELO

Cabelo ao vento não existe mais. Talvez o vento já não precise mais assoprar. No quarto desinfetado, branco, limpo, cheirando a tristeza e a álcool 70º, moram uns olhos que eu não reconheço mais. Num corpo de senhora cinquentona de pernas e forças esculturais, moram olhos de longas datas. Olhos que estranham, olhos que sabem, que logo, logo serão comidos, pela morte, pela saudade ou pelo remorso.
E ela continua se comendo por dentro, numa terrível mania de dominar por completo seu destino errante de escolhas marteladas. E essa dor que não passa. E esse cabelo negro... Cabelo de menina. Cabelos... Índia teus cabelos, lá, lá, lá... Risos desafinados e distantes tomam conta da memória. Dejetos fazem parte dessa história sem final escrito, mas novelisticamente esperado.
É nessa hora que a poesia e a calma se vão. Essa história vaga e insana que novamente se escreve no meu ventre seco e escuro. Na minha cabeça pulam sacis nos pontos de ônibus desativados. Vejo o Paço, ouço passos, passa o tempo, pousa o medo, paraliso triste e nostálgica, olhos que nem na memória conseguem voltar a mim. Nem um apoio consigo mais lembrar. Nem a força com que grita, briga ou agarra. Parece que mais nada existe depois que a cabeça cansou de sentir dor.
Excede no cuidado, na morfina e na parcimônia. Falta na verdade, no cabelo e na memória. Excede no abraço, na fé, no desgaste. Falta no tempo, no perdão e na história.